Chegou em mim uma nova crise. Bombardeio de acontecimentos dos últimos tempos, dias viram anos, horas viram vidas, que são paridas em um novo corpo que começa a existir nas minhas velhas formas. Vendo o tempo passar pela janela, pergunto-me : para onde nos levam os trens?
Tenho que lutar diariamente com a minha mediocridade. Com a minha vontade de criação e a impotência de tantas vezes nada criar. Porque o que diferencia os seres humanos é exatamente o que deles se faz criação.
Fui ver, nesta última quarta feira, Jan Fabre no Théâtre de la Ville, em Paris. Não conhecia Jan Fabre, não sabia quem ele era e nem sobre o que ele falava. Amigos me disseram que eu tinha que ver, então eu fui. Como sempre fiquei uma hora e meia na fila de espera, porque esses espetáculos desses « megas contemporâneos » são sempre lotados, o que não significa de forma alguma que não haja lugares para os esperançosos. Gosto de ir ao teatro sozinha, e faço muito isso em Paris. Não foi fácil ver Jan Fabre, pelo menos pra mim, os amigos conhecedores riram gentilmente da minha inocência chocada. Pensei na minha mãe, que se chocou com a minha última peça de teatro em São Paulo, imagine você se ela encontrasse Jan Fabre ? Isso nunca vai acontecer ! Ainda bem que de alguma forma abri em mim espaços que me permitiram ir além, vir a Paris, ao teatro de la Ville, para poder ver e esse e tantos outros grandes artistas do nosso tempo. Talvez seja esse presente de papai, que mesmo tendo torcido o nariz, disse baixinho pra mim, quando assistiu a mesma peça que mamãe ficou chocada, o público não vai mesmo gostar minha filha, porque não vai entender, mas a critica vai falar bem, afinal isso é coisa de artista, artista contemporâneo ! E era, mas a critica paulista também não entendeu, vejam só, e pixou assim como boa parte do público a nossa suada criação, fomos enfim um fracasso, daqueles que nos marcam, tanto para o bem, como para o mal.
O público de Paris ontem ficou. Normalmente quando a peça choca assim, metade se vai. Ontem algo aconteceu, alguma pergunta deixou o público parisino imóvel em suas cadeiras, mas com certeza borbulhante em suas veias . Não mamãe, não tinha nada de bonito acontecendo no palco, era tudo feio e agressivo, não existia mais a possibilidade de sonhar com uma possível salvação, redenção, era posto e escrachado a nossa fracassada existência, o nosso fracassado sistema. E pior, ou melhor, num riso sarcástico, bem alto, desafiando qualquer crença que ainda restasse.
Jan Fabre diz : « Tudo se compra, se pode e se faz ! Tudo é normal. A pornografia entra em vossas casas por todos os canais midiáticos, a publicidade recicla o erotismo , o sexo se prática no telefone e a intimidade é exposta em toda parte. Onde está o verdadeiro desejo ? Nossa sociedade competitiva transforma o orgasmo em performance. Os valores se evaporam nessa normalidade triunfante. A extrema direita se coloca sem complexo. A humanidade se dissolve no mercado. O que resta do nosso ideal de beleza ? Do nosso idealismo ? »
Enfim, estava tudo lá desenhado em seu palco, de formas duras e riso largo. No final eles dançaram e Dionísio me salvou, enxerguei, mesmo diante à tanta descrença, um fio dessa tal beleza perdida, que ele me perguntou onde estava. Estava lá Mister Faber, no corpo humano pulsante dos seus bailarinos, que ainda querem dançar a beleza que há, mesmo que seja uma dança infernal.
Saí do teatro sozinha, sem saber o que pensar, liguei para um amigo, já muito mais andado do que as minhas pernas, mas ele não estava no momento. Pena. Queria o diálogo imediato. Fiquei no meu silêncio ensurdecedor. Peguei minha bicicleta e parti. De volta pra casa. Casa agora, Paris, o que muito me agrada. Pensei no Nelson, pensei no Marcão, pensei no nosso teatro.
Domingo fui assistir Maguy Marin, que também conheci nessas últimas idas aos teatros parisinos, nem sempre em Paris, diga-se de passagem. Mas Maguy Marin merecia mil viagens de trem para periferia. Sua criação, de uma beleza e crueldade que meus olhos conhecem simplesmente porque meus olhos são muito mais velhos do que a minha própria existência, e se fazendo mítico aquilo que se inscreve em cena, tudo em mim compreende. Maguy Marin é para os meus olhos o mais novo sonho. A existência possivel do belo, do cruel, daquilo que é, que respira, que pulsa, que recebe, que doa, que indaga, que ainda sonha. Feminino, por que não ?
Hoje o trem que eu peguei na Gare Montparnasse me trouxe a pequena cidade de Poitiers, no caminho, mil coisas na minha cabeça. A constatação da mediocridade que existe em mim. A vontade de gritar. Fuck you ! Como ontem gritou Jan Fabre em mim ! Fuck you Jan Fabre ! Fuck you ! A vontade imensa de criar meus próprios caminhos. A minha poesia.
Ariane Mnouchkine, com quem estive no último inverno, disse que acredita que estamos entrando em uma nova era, um retorno a gentileza, as utopias, a beleza. Aos ritos. Acho que prefiro descansar nas palavras de Ariane. Não que Jan Fabre não tenha para mim extrema importância e todo o meu respeito. É justamente ele que me deixa sem dormir, enfim. Mas sou menina e aprendi a gostar dos contornos mais sutis.
A verdade é que nos últimos tempos tenho estado com pessoas muito especiais, desde as mais celebres, as mais anônimas, todos inscrevem em mim memórias para o amanhã. De novas amizades, parcerias e amores. Amigas que partem ainda cedo. Parcerias que se criam, para ainda futuro. Vizinhanças que se aproximam sempre e mais. Paixões que retornam em sábados de madrugada primaveril de gravata cor de rosa e gosto de champange nos lábios que me tentam ainda e sempre e mais, vontade de dançar um último tango em Paris. Dançamos então ! Viva viva esses encontros de vida ! Viva viva curso de salsa as cinco da matina no meu salão ! Viva viva a união franco brasilina que alarga os corações ! Viva Maguy Marin ! Jan Fabre ! Fernando Eichenberg ! Ariane M. ! Erica Montanheiro ! Mrs B. ! Viva viva essa Poitiers que chegou hoje em mim ! Viva viva essa tal mediocridade que me dá ganas de querer mais e mais ! Viva viva Florentino ! Viva Baskerville, eterno sempre em mim ! Viva toda uma saudade ! Viva viva aos viajantes, e principalmente um viva para aqueles que tem coragem !
4 comentários:
Putz! Você anda inspirada hein? Não sei se sua peça em SP foi um fracasso mesmo, ou não, se o público entendeu, se a crítica massacrou... Sei lá! O que eu sei é que, pelo menos na arte de poesia e da crônica, você manda muito bem! Acho que já comentei isso aqui antes, mas elogio nunca é demais né... Escrever assim é uma coisa visceral né.. To até pensando em começar um blog tmb!!!
Oui!!! Pour quoi pas?! A peça era linda... mas foi um fracasso no melhor dos sentidos!
A inspiração... é sempre a melhor companheira da não compreensão!
Que a expressão seja então vital!
obrigada ricardo!
Tenho lido seus escritos e surge o impulso de sentar ao seu lado e trocar, e então o faço enquanto leio e aprecio, das suas inquietudes, o expressar do profundo tão belo. Despetalando a flor é o movimento em que me sinto, com muitas mortes e tantos encontros e em mim o silêncio, ainda e sempre, que sai um pouco através de você. Viva as conexões, viva a alma!!!
e vc poderia me dizer seu nome senhor anonimo, de conexões de alma?
beijos
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